"(...) Carlos Marighella foi abatido pelas forças de repressão da ditadura. Naquele momento elas não mataram apenas o militante intemerato de uma organização de luta, mas um líder que encarnava as aspirações de liberdade e justiça do povo brasileiro.

Os que assumem a grave responsabilidade de combater pelo interesse de todos tornam-se símbolos e constituem patrimônio coletivo. Carlos Marighella deu a vida pelos oprimidos, os excluídos, os sedentos de justiça. Ao fazê-lo, transcendeu a sua própria opção partidária e se projetou na posteridade como voz dos que não se conformam com a iniqüidade social."

Antonio Candido


Assassinado há 40 anos, situa-se entre aqueles que escreveram as mais importantes páginas da história de lutas do povo brasileiro: Zumbi, Sepé Tiaraju, Felipe dos Santos, Tiradentes, Cipriano Barata, Frei Caneca, Bento Gonçalves, Angelim, Antônio Conselheiro, o "monge" João Maria, Luiz Carlos Prestes, Francisco Julião, Leonel Brizola, Gregório Bezerra, Darcy Ribeiro e tantos outros. São nomes que ainda não saíram das sombras a que a elite insiste em relegar a nossa história. Trinta anos depois de morto, ele prossegue desafiando a generosidade dos vivos, e apontando, para o nosso país, um caminho de futuro, onde todos tenham saúde, educação, trabalho e moradia.

"É preciso não ter medo, é preciso ter coragem de dizer"
Marighella

Atualidade de Carlos Marighella

Paulo Cannabrava*















Três pontos fundamentais do pensamento de Carlos Marighella são de extrema atualidade.


1) Carlos Marighella qualificava a ditadura brasileira de fascista


2) Entendia que o caráter da revolução brasileira é de libertação nacional dando início à construção do socialismo.


3) Propugnava pela formação de uma grande frente de massas, com hegemonia da aliança operário-camponesa para realizar a revolução brasileira


Vejamos cada um desses pontos.


O fascismo


Carlos Marighella conhecia o que foi o fascismo europeu. Em síntese, pode-se dizer que era a ditadura do capital monopolista exercida pelo estado militarizado, utilizando-se de técnicas avançadas de comunicação e manipulação das massas organizadas no partido do governo.
Aqui no Brasil, no essencial, a ditadura militar representou a apropriação do Estado pelo capital monopolista. Essa característica por si só já justifica sua qualificação como fascista.

Não obstante, o fascismo caboclo tem suas especificidades que lhe dão uma aparência externa diferente o suficiente para enganar os incautos. Não utiliza um grande partido de massa, mas implanta um regime de partidos tutelados. No lugar das grandes mobilizações reprime violentamente as organizações populares, castra suas lideranças, manieta a imprensa e censura o pensamento intelectual. As técnicas de propaganda, muito mais sofisticadas, são usadas para alienar, amedrontar, convencer.


O fascismo caboclo teve, no ciclo de governos militares, um caráter nacional. Nisso se assemelhava um pouco mais ao fascismo europeu que embora submisso à hegemonia da potencia imperialista européia de então, a Alemanha hitlerista, procurava privilegiar o desenvolvimento nacional, inclusive o seu próprio capital monopolista. O Brasil não foi à guerra de conquista territorial mas todos os vizinhos latino-americanos ficaram com o pé atrás o acusando de intenção expansionista. Até a bomba atômica estava no livro de receita dos estrategistas discípulos de Golbery


Essa preocupação com o desenvolvimento nacional é a única grande característica de fundo que vai mudar no fascismo caboclo com o advento da Quinta República. A submissão ao capital monopolista imperialista agora é total. O eixo do capital já não é bancário/industrial e sim financeiro/especulativo. A era Collor/FHC é a do desmanche do parque industrial.


Com relação à política, continua sendo praticada por partidos tutelados, sem propostas ou mesmo personalidade própria. Técnicas cada dia mais sofisticadas de comunicação e de manipulação das massas continuam sendo empregadas para manter as massas alienadas. Analfabetismo, desemprego, exclusão, violência e medo formam um cenário sumamente difícil para o trabalho e desenvolvimento de partidos populares. Nunca, desde D. João VI, tivemos uma imprensa tão submissa.


Carlos Marighella se estivesse entre nós certamente teria muitos motivos para continuar a qualificar o regime da era Collor/FHC de fascismo caboclo.


Libertação Nacional


Carlos Marighella dizia que o caráter da revolução brasileira é de libertação nacional.
A luta de libertação nacional constitui uma etapa na luta dos povos em que o principal objetivo é conseguir a independência e o desenvolvimento. A conquista desse objetivo deve abrir as portas para construir uma sociedade plena de justiça social, humana e solidária, uma sociedade socialista.


O ponto de partida para se alcançar esse objetivo é a perfeita caracterização do inimigo.
Se estivéssemos no tempo de Carlos Marighella, ele diria que o fundamental é derrocar o domínio imperialista, pois a apropriação do estado brasileiro pelo capital monopolista se deu sob a égide do imperialismo. Na década de 60, era o imperialismo das corporações transnacionais hegemonizadas pelo capital estadunidense. Na década de 50 diríamos, simplesmente: o imperialismo ianque.


Hoje é tal a alienação que até no meio intelectual de esquerda se ouve dizer que falar em imperialismo é estar fora de moda.


A moda agora é aceitar que a globalização vai nos redimir de todos os pecados, que se não nos globalizamos nos condenamos à idade da pedra. E não é ironia afirmar-se que é precisamente a tal da globalização que está levando nosso povo à idade da pedra. Nunca a apartheid social foi tão grande. E o que é na essência a globalização senão a nova cara do imperialismo? É o imperialismo na modernidade.


Como resultado da era Collor/FHC, a relação dívida/PIB chegou, em março de 99, a 52,2% de um PIB de US 729 bilhões. Em 1998, só para pagamento de juros da dívida externa houve um desembolso de US$ 72 bilhões. Assistimos o absurdo de estar pagando, anualmente, mais de 10% do PIB de juros para os banqueiros nacionais e internacionais.

Com as chamadas privatizações da era Collor/FHC, jogou-se fora, vendeu-se a preço de banana pago com moeda podre, patrimônio nacional que levamos muitas décadas de suor e sangue do trabalhador brasileiro para construir. Com a alienação desse patrimônio – a Vale do Rio Doce, o Sistema Telebrás e outras – arrecadaram no período cerca de US$ 85 bilhões. Paga um ano de juros da dívida! E os tecnocratas a serviço do FMI incrustados nos nossos ministérios em Brasília, dizem que ainda faltam US$ 40 bilhões do patrimônio público para vender entre o final de 99 e 2000. Não paga um ano de juros da dívida.


Especialistas em planejamento admitem que com o equivalente a14% do PIB de investimentos na área produtiva se pode manter um ritmo de desenvolvimento superior a 6% do PIB. O Estado quebrado não tem dinheiro sequer para financiar a própria estrutura administrativa. Não há dinheiro para investimento em saúde, educação, geração de energia, etc., etc.. Estamos na segunda década perdida. Vinte anos de estagnação; ou retrocesso??


É preciso gerar três milhões de novos empregos todos os anos só para atender o crescimento vegetativo da população brasileira. Nas duas décadas perdidas não houve geração de novos empregos. Ao contrário, foram extintos mais de três milhões de empregos industriais.
Estivesse entre nós Carlos Marighella ele diria que o principal inimigo continua sendo o imperialismo, agora travestido de globalização; o capital especulativo que está transformando o mundo num grande cassino; os burocratas incrustados na administração pública trabalhando em favor dos interesses imperiais; os oligarcas e burgueses responsáveis e co-responsáveis pelo desmanche do Estado e da Nação.


Nunca, desde Pedro Álvares Cabral fizeram tanto dano ao País. A metrópole colonial saqueava, praticava o genocídio dos índios e negros, mas construía. Os anos de estagnação mais o desmanche do patrimônio das últimas décadas constitui um retrocesso de tal ordem que serão necessários mais 20 ou 30 anos para voltarmos, proporcionalmente, ao mesmo nível e ritmo de produção dos anos 70.


Frente de massas


Identificado o inimigo, diria Marighella, a tarefa principal dos patriotas e democratas é forjar a unidade das forças que o combaterão.


Propugnava então pela formação de uma ampla frente política, que sob a hegemonia da aliança operário-camponesa, conduzisse as massas à revolução. Na conjuntura dos anos 60, em que Cuba empolgava com seu exemplo, acrescentou o ingrediente da guerrilha, porém, concebida como parte de um plano estratégico e tático global. Dizia o documento do Agrupamento Comunista de São Paulo, que selou o rompimento com as teses conciliatórias do PCB e lançou a idéia da resistência armada:
Enfim, o que queremos é construir a estrutura global necessária ao desencadeamento e enraizamento da guerrilha, com o seu núcleo armado operário e camponês, visando transforma-la num exército revolucionário de libertação...


Mas, qual era a proposta de Carlos Marighella para mudar a situação vigente? A resposta pode ser encontrada no manifesto da ALN lido pelas rádios e publicado pelos jornais em agosto de 1969. Não se pode deixar de apontar a analogia dessa proposta com a formulada pelos revolucionários da Aliança Nacional Libertadora que em 1935 se diziam contra o imperialismo, contra o fascismo e contra o latifúndio e propunham um governo popular para realizar a reforma agrária, suspender o pagamento da dívida e nacionalizar as empresas estrangeiras. Marighella, com a mesma simplicidade e objetividade afirmava, 30 anos depois:


Pertencemos à Ação Libertadora Nacional e o que propomos é derrubar a ditadura, anular todos os seus atos desde 1964, formar um governo revolucionário do povo; expulsar os norte-americanos, confiscar suas firmas e propriedades e as firmas e propriedades dos que com eles colaboram; transformar a estrutura agrária do país, expropriando e extinguindo o latifúndio, dando terra ao camponês, valorizando o homem do campo; transformar as condições de vida dos trabalhadores, assegurando salários condignos, melhorando a situação das classes medias; assegurar a liberdade em qualquer terreno, do campo político ao campo cultural ou religioso; retirar o Brasil da condição de satélite da política externa dos Estados Unidos, coloca-lo no plano mundial como nação independente.


Será que é preciso mudar alguma linha desse manifesto??

*Paulo Cannabrava Filho é jornalista e foi companheiro de Marighella na ALN

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